Digital Technology

Opinião, por Jacqueline Resch (psicóloga): “Pesadelo na velocidade 2X – estamos ficando invisíveis uns para os outros”

 Certa noite, tive um pesadelo: estava conversando com um grupo de executivos sobre a importância da comunicação e da escuta na construção de ambientes colaborativos, quando, em determinado momento, percebi que muitos apertaram um botão em seus braços. Isso chamou a minha atenção, mas, inicialmente, não entendi muito bem do que se tratava. Na primeira oportunidade, resolvi averiguar o significado do gesto e fui informada de que se tratava de um dispositivo que permitia ao público me ouvir e a si mesmo, no modo 2x, ou seja, aquele disponibilizado no aplicativo WhatsApp para acelerar a velocidade do áudio das mensagens.

Gelei! E agora, o que que eu faço?

Que contrassenso!  Estava ali para falar da importância da escuta e sendo ouvida no modo acelerado.

Ainda bem que acordei nessa hora.

Fiquei impressionada com o meu sonho porque percebo essa contradição presente em nossa vida com muita frequência. Nos sobrecarregamos de tarefas, cumprimos longas jornadas, participamos de reuniões e até conversas com amigos, sempre com a atenção dividida em outros assuntos. Mas, tudo bem, não é? Afinal, uma sessão de mindfulness, terapia ou outra atividade similar no fim do dia nos ‘zera’ para a rodada do próximo. Será?

Esclareço antes que me cancelem: não tenho nada contra mindfulness ou terapia, da qual sou adepta há muitos anos. Mas qual é o sentido de praticar a atenção plena por 1 hora ao dia e viver no modo 2x no restante do tempo?

Em uma conversa com amigos depois do pesadelo, coloquei o tema na mesa: quem aqui usa o WhatsApp no modo acelerado? E em que circunstâncias?

A maioria utiliza porque a vida está corrida, e a demanda só cresce,  alguns para ouvir pessoas prolixas, inconvenientes ou para lidar com assuntos chatos. Outros disseram que aceleram “quando já sei tudo que o outro vai dizer”. Como assim?

A vida virou uma correria, e estamos no limite, envolvidos com muitas coisas ao mesmo tempo. Por muito tempo, acreditamos que ser multitarefa era um plus, um diferencial, uma qualidade. Mas, hoje, essa ideia é cada vez mais contestada.

Byung Chul Han em seu célebre livro “A sociedade do Cansaço” explica que a multitarefa é característica dos animais selvagens, que precisavam estar em constante estado de alerta para sobreviver, dividindo a atenção entre várias ameaças. Ele acrescenta que fazer várias coisas ao mesmo tempo afeta nossa capacidade de refletir e aprofundar, nos deixando mais vulneráveis ao esgotamento e ao cansaço mental.

Margaret Andrews, professora na Harvard Division of Continuing Education, critica a multitarefa, destacando seus impactos negativos na produtividade e na eficiência. No caso da escuta, ela explica que a mesma parte do cérebro que usamos para ler ou digitar é a que utilizamos para ouvir. Não dá para fazer duas coisas ao mesmo tempo. Você até as realiza, mas não com a excelência e a atenção integral que cada uma exige.

A professora também defende que, embora a multitarefa seja comum no mundo moderno, ela pode reduzir a capacidade de concentração e aumentar o estresse.

Vivemos em um mundo impaciente, estamos impacientes e convivemos com pessoas  impacientes.

Os índices de saúde mental em nosso país? São críticos, merecem uma discussão à parte.

Gentileza, educação e solidariedade perderam espaço; estão fora de moda. Consomem tempo.

Outro dia, entrei em uma farmácia e dei boa noite ao segurança. Ele pareceu surpreso.

Perguntei a ele por que estava surpreso e ele me disse que poucos clientes o cumprimentavam. Perguntei a ele quantas pessoas já tinham passado por ele aquele dia ao entrar na farmácia. Resultado: 200 pessoas, e apenas um boa noite. Afinal, entramos na farmácia para comprar, não para conversar.

Estamos ficando invisíveis uns para os outros.

O mais espantoso é que tem gente tendo conversas altamente cordiais com o Chat GPT – Oi Chat, tudo bem? Mas usando o modo 2x nas conversas da vida.

Rubem Alves, em seu lindo texto “Escutatória”, publicado no livro “O Amor que Acende a Lua”, há 25 anos atrás, disse:

“Sempre vejo anunciados cursos de oratória.

Nunca vi anunciado curso de escutatória.

Todo mundo quer aprender a falar.

Ninguém quer aprender a ouvir.

Pensei em oferecer um curso de escutatória, mas acho que ninguém vai se matricular.

Escutar é complicado e sutil…

E eu te pergunto: se a Meta oferecesse o recurso para você desacelerar o WhatsApp, você adotaria?

Foto: Wallace Nogueira

Jacqueline Resch é psicóloga, sócia-fundadora da Resch RH, integrante do Conselho Deliberativo da ABRH-RJ, membro do Comitê Curador do RH Rio e professora do MBA em RH do IAG/ PUC Rio.

LEAVE A RESPONSE

Your email address will not be published. Required fields are marked *